10 Considerações sobre Esta Terra Selvagem de Isabel Moustakas, ou como nascem os tempos violentos

O Blog Listas Literárias leu Esta Terra Selvagem, de Isabel Moustakas publicado pela Companhia das Letras; Confira neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro:

1 - Esta Terra Selvagem situa-se no limiar entre o romance e a novela, não sendo muito longa, mas dotada de complexidades e tensão que a tornam uma obra exigente e cheia de intenções através da exibição de um retrato sombrio e violento de seu ambiente;

2 - Na obra acompanhamos os passos do jornalista João, que a partir de um caso específico passa a apurar uma série de crimes ligados à intolerância étnico-racial, de gênero, etc... Com isso, o protagonista desvela diante do leitor um cenário tomado pelo fascismo herdado das ideologias nazistas em que um grupo organizado passa praticar violências contra negros, gays, imigrantes...

3 -  Esse ambiente opressor e violento é justamente um dos pontos altos da trama, pois a atmosfera, que infelizmente dialoga com eventos recentes (talvez futuros) reais é totalmente opressora sendo capaz de transparecer todo o medo que pretende carregar, bem como denunciando uma sociedade que ainda convive com problemas que deveriam ter sido superados a partir de exemplos tenebrosos como a Segunda guerra Mundial;

4 - Nesse sentido, a obra soa como uma voz de resistência à intolerância, como podemos perceber no elucidativo trecho "É sempre engraçado esse tipo de conversa. Sempre me lembrava de Travis Bickle antecipando (ou profetizando) a "chuva de verdade" que viria (virá?) limpar tudo.O problema é que a "Chuva de Verdade" desses caras é quase sempre uma mistura de sangue e merda" que claramente que tais discursos intolerantes têm apenas servido como argumento para violência, poder, além de soarem totalmente deturpados diante da incapacidade "desses caras" conviverem civilizadamente em respeito ao outro e às suas diferenças;

5 - Toda essa construção política da obra é feita numa estrutura muito próxima do gênero policial, embora eu tenha minhas próprias convicções quanto a isso, observando que este tipo de trabalho ao nem sempre adaptar-se totalmente ao gênero deveria ser visto muito mais como narrativas de crime, que é o caso aqui, que para muito além da despretensão dos romances policiais, é uma obra carregada de significados e intenções ousadas de colocar à mesa uma pauta de debate que reforça a necessidade de abrirmos os nossos olhos para um problema existente;

7 - Além disso, convém também observar que ao que parece comum às narrativas brasileiras de crime, na obra de Moustakas a polícia é apresentada pelas personagens como inoperante, desinteressada, incapaz, a tal ponto que numa das frases a personagem da voz e registro a algo que não é raro de se ouvir por aí "é a polícia, né?", na obra um ato carregado de um sarcasmos resignado. Entretanto, se uma ou mais personagem acaba observando a polícia deste modo, é importante ressaltar que a obra, por meio da ação, justamente contradiz este senso comum aos habitantes da respectiva ficção, pois acaba sendo a polícia a detentora da ação e da solução final para a obra;

8 - Aliás, é justamente aí que começamos a observar alguns detalhes que iremos questionar na narrativa. Por um lado podemos notar essa intencionalidade de primar pela constituição desse ambiente quase distópico tamanho seu poder sobre o leitor, pois a ambientação salta das páginas ao passo que o cenário pode ser visualizado pelo leitor de tal forma que a opressão e o medo pode ser compartilhado, bem como a indignação diante desta cidade, como diz o próprio título, selvagem. Contudo, essa prioridade ao ambiente parece tirar a atenção da complexidade psicológica das personagens, cujo plano está sempre no da ação do que propriamente a reflexão. Dá a sensação de que a autora ao tomar tal caminho quisesse jogar o ambiente sobre o leitor exigindo que este sim, para, reflita e construa algo com esse cenário de intolerância que toma a metrópole. Além disso, o que talvez amplie essa desconfiança quanto às complexidades psicológicas das personagens é que suas vozes são muito próximas, geralmente fazendo uso de marcadores linguísticos muito semelhantes, que dificulta a distinção da identidade;

9 - Do mesmo modo, está justamente em seu protagonista a necessidade de questionamentos maiores, ou até mesmo reflexões que talvez precisem de maior acuro, visto que o repórter João é quase que praticamente uma passageiro da trama que o enreda que às vezes torna-se difícil vê-lo de fato como um jornalista (ou pelo menos um bom jornalista). Se por um lado ele mostra-se capaz de conseguir determinados furos de reportagem e embrenhar-se nos casos de violências interligadas que ocorrem pela cidade, por outro ele muitas vezes mostra-se incapaz de perceber coisas claras (pelo menos claras ao leitor, ainda que não pareça ser a intenção da obra), além do que mais me incomodou ao final da obra que é justamente a escolha acovardada feita por ele, ainda que pese sobre ele o trauma pessoal vivido;

10 - Enfim, Esta Terra Selvagem é uma obra interessantíssima e cruelmente necessária. Uma narrativa de crime carregada de intenções (políticas e sociais) que não dosa na crueza de suas cenas em que o horror salta das páginas por meio de um texto que de certa forma carrega (ou remonta) o naturalismo, pois aqui o sangue, a merda e as vísceras são os excrementos de uma sociedade doente no campo social e humano em que sem que tenhamos aprendido com os erros dos passados, eles retornam por meio de grupos carregados de símbolos e violência que denotam apenas uma coisa: medo. Medo de um futuro com esses caras das cabeças raspadas, camisetas brancas, coturnos pretos com seus cadarços verdes e amarelos. Como fato, a ficção de Isabel Moustakas nos grita que a ignorância ainda sobrevive entre nós.



   

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